“... Eu sou do povo, eu sou um Zé Ninguém / Aqui embaixo, as leis são diferentes...”, diz o refrão provocador da música “Zé Ninguém” da banda Biquini Cavadão. Os autores da letra fazem uma alusão à existência de dois mundos. Um, onde os poderosos que controlam esses mundos vivem de um jeito baseados em leis e normas que regem as suas ações e o outro, o mundo dos Zés Ninguém, onde as mesmas ações se tornam diferentes mesmo sendo igualmente baseadas nas supostas leis e normas. Mas que com eles as leis se tornam diferentes, “mais rígidas”, transformando a realidade em um mundo diferente. Então eles, os autores dos versos, questionam: “Quem foi que disse que os homens nascem iguais?” Por quê?
Quando ouço e leio esses versos, sempre tenho em mente que o propósito dos autores foi mostrar esteticamente o aspecto da realidade, por eles recortado, para que um número expressivo de pessoas pudesse compreendê-lo. É um velho recurso. Platão recorreu com maestria a esse recurso em suas alegorias e diálogos. Bacon e outros modernos inclusive, à sua maneira. E atualmente as tevês o transformaram numa chatice tosca exagerando o objetivo quando apresentam um fato qualquer, no entanto complexo e cheio de variáveis, através de “simulações”. Chegam ao limite do recurso quase chamando o telespectador de burro.
Mas as tevês são as tevês. São um dos expedientes que os donos do poder utilizam para difundir a ideia de isonomia das leis, das normas e dos mundos. Dizem que as leis e as normas são necessárias e valem simetricamente para todos. Será que esses dois mundos são isonômicos? Ou “aqui embaixo, as leis são diferentes”?
A meu ver, Alvaro, Bruno e Sheik (os autores dos versos) fizeram como Maquiavel em “O Príncipe” - a melhor alegoria do tipo de coisa que estou falando aqui. Ao mesmo tempo em que apresentam esteticamente uma história mostrando como se ‘deve’ ou não fazer as coisas estão mostrando, além disso, como as coisas são concretamente. É uma estrada de duas vias. Vale a pena passear pelas duas se se quer entender minimamente os mundos.
Maquiavel ensinou como um Príncipe deve governar e exercer o poder da melhor forma possível e desse modo a Itália voltasse a ser unificada. Era a sua “intenção” direta. Tanto que o livro é uma forma de bajulação ao Príncipe para que ele, Maquiavel, pudesse voltar a ter um cargo público. Mas estava ao mesmo tempo mostrando às pessoas como se trava a luta pelo poder e como alguém pode conseguir exercê-lo. Assim desmistificou a ideia bastante difundida na sua época pela Igreja que dizia ser um Príncipe o escolhido de Deus. Reside aí o pulo do gato de Maquiavel.
E onde está o pulo do gato do Biquini Cavadão na letra “Zé Ninguém”, a meu ver?
José Arbex Jr., a partir do sociólogo José de Souza Martins (“O poder do atraso – ensaios de sociologia da história lenta”) diz que: “A origem mais remota da corrupção é o sistema de casa grande e senzala, ainda muito longe de seu fim. Os donos da casa grande se julgam, com cínica razão, no direito de manobrar as instituições de Estado como se fossem assunto privado, infenso ao controle público – já que “público”, no caso, se confunde com a própria senzala. E exercem esse direito, com desenvoltura. A casa grande acredita, firmemente, não dever explicações à senzala.” (Grifo meu).
Sendo assim desde sempre, quem não é ministro e nem magnata está sempre exposto a um tiro, mesmo que tenha saído pela culatra. Ou seja, as tais leis e normas (e aqui a abordagem não se restringe à Justiça, mas também e, principalmente, à Moral) seriam uma maneira de garantir aos donos do poder, ou aos senhores da casa grande, o direito de agir livremente em busca de seus objetivos sem barreiras. E isso para garantir a permanência do mesmo grupo social no poder (os seus donos, os senhores). Tudo vale.
Porém consignando universalmente o que é o certo e o errado, que isso ou aquilo é crime. É o aspecto teórico da isonomia legal e moral posto para “todos” como absolutamente necessário para o bem viver e “Que se eu não for um bom menino, Deus vai castigar!” Porém todos sabem – depois de ouvir “Zé Ninguém” - que isso é apenas no campo teórico, pois na realidade concreta, para os donos do poder ou senhores da casa grande, nada disso interessa realmente. Eles só são hipócritas em público, no bate-papo intraclasse tratam as suas ações como algo do campo do necessário para a subsistência da classe a que pertencem e da manutenção dos privilégios.
Como Marx já disse, as leis e a moral de uma sociedade são sempre as leis e a moral da classe que detém o poder. São os seus interesses e objetivos que estão inscritos nelas. São seus mecanismos de sustentação. E os meios de informação, formação e manutenção da ordem estabelecida (tevês, escolas, justiça, polícia, igrejas, jornais, revistas...), sendo controlados por eles, garantem a difusão e, além disso, o convencimento da “necessária isonomia”.
Mas enquanto centenas de milhões e bilhões do erário público, desde a Colonização, sucessivamente foram desviados para os interesses e objetivos dos donos dos mundos e sempre baseados na falácia que diz serem eles que geram a riqueza do país, então não se admira que nesse processo de privatização do dinheiro público ocorram enormes roubos: banqueiros socorridos, empresários subsidiados eternamente, obras faraônicas financiadas pelo erário público e abandonadas...
Nesse processo só não vale uma coisa, que é imperdoável e exemplarmente destacada, como diz José Arbex Jr.: “O grande pecado no Brasil é perder, não é lesar o erário.” Ou seja, perder significa ser descoberto no ato de cometer as ações garantidoras dos privilégios. Sendo mais direto: roubar. Só não pode é ser flagrado, pois se for será execrado. Entra em cena a hipocrisia, publicamente. Nos diálogos intraclasse, só lamentações pelo “erro” do congênere.
No mundo oposto, ou seja, no mundo onde “as leis são diferentes”, a coisa se dá em outro patamar. Mais uma vez recorro a um exemplo citado por José Arbex Jr., mas que é do nosso cotidiano: “... mães que furtam comida em mercearias e supermercados para alimentar filhos famintos amargam penas de até dez anos.” É outro mundo.
Entretanto as leis são as mesmas, ou pelo menos deveriam ser. A aplicação dura e implacável das leis depende de quem cometeu o crime, pois caros advogados são capazes de defender quem tem muito dinheiro pelos labirintos das leis feitas sob encomenda e, assim, garantir impunidade. É o pulo do gato do Biquini Cavadão.
O Filósofo Ernest Gellner, citado por Zygmunt Bauman no seu livro “Ensaios sobre o Conceito de Cultura”, elucidou socialmente o conceito “bobilidade” (boblility) no início dos anos 1970 ao afirmar que: “Bobilidade é um artifício conceitual pelo qual a classe privilegiada da sociedade em questão adquire parte do prestígio de certas virtudes respeitadas nessa sociedade, sem a inconveniência de ter de praticá-las.” Com uma pitada de humor ele garantiu o pulo do gato do Biquini Cavadão.
Logo, é como se alguém dissesse assim: “Eu faço as leis e normas que ‘devemos’ todos seguir. Elas são fundamentais para o nosso bem viver. Quem as cumpre será enaltecido, recompensado e reconfortado (“Quem foi que disse que Deus é brasileiro”?). Mas eu, particularmente, não posso me dar ao luxo, ou inconveniente de cumprir todas elas, pois se assim fosse eu não conseguiria agir para garantir meus privilégios.”
E esse alguém continuaria o raciocínio: “Se todos fossem iguais, se todos agissem a partir dessas únicas leis e normas não haveria privilegiados. Portanto, devo garantir através da hipocrisia pública que sou fiel seguidor das leis e normas e em razão disso mereço ser enaltecido, recompensado e reconfortado, prioritariamente. Vocês não podem fazer aquilo o que eu faço, mas apenas o que eu digo. O que eu faço é privilégio meu fazer, se você fizer igual será duramente penalizado, pois eu tenho o poder para puni-lo. Aí embaixo as leis são diferentes.”
É simples assim? É claro que não é tão simples assim. É muito mais complexo. Contudo o apelo estético utilizado pela banda dá conta do recado. E o que foi generalizado é para mostrar um padrão comum de ação, mas que deixa aberta a porta para se veja que lá dentro há pessoas que são dignas e seguem as leis e normas como fazem a maioria dos Zés Ninguém.
E como eu gosto de ouvir quem tem alguma coisa a dizer, há outra música do Biquini Cavadão (também de 1991) que mostra que os Zés Ninguém, ou a senzala, têm se exaurido dessa conversa de dois mundos e têm procurado agir de outro modo buscando garantir seus privilégios. Só que, mesmo parecendo contraditório e absurdo, dentro das leis e das normas estabelecidas. Visto que o poder de punir ainda está nas mãos dos donos dos mundos, ou a casa grande. A outra música é “Cai água, cai barraco”, cujos versos são de Carlos Coelho, diz assim: “... O povo anda armado / O povo anda armando / O povo todo anda armado e está cansado de sofrer...”
Armado de quê? Armando o quê?
Armado de vontade, de indignação diante de tanta podridão, armado de consciência, armado de voto. Se pondo assim diante das possibilidades, o povo está armando uma mudança na concretude dessa realidade dura para ele. Está cansado de tanta ostentação despropositada dos privilegiados de sempre. Está cansado de injustiças sociais, econômicas e culturais. “Está cansado de sofrer”
Esse recado começou a ser dado a partir de 2002.
P. S (1).: Outro exemplo do que quis mostrar Maquiavel se deu de forma clara e didática na eleição do último Papa. Foi mostrado que o eleito é o escolhido dos grupos internos que formam a igreja católica. A luta pelo poder se deu em escala notável entre esses grupos e que resultou no desmascaramento da mistificação da escolha divina. Quem escolhe o Papa são os seus colegas religiosos e não Deus como muitos até então acreditavam. A imprensa fez o papel de Maquiavel na desmistificação da escolha do Papa. Mas para não se dobrarem ao óbvio, os religiosos envolvidos dizem agora que Deus toca nos corações deles para que escolham aquele que é eleito. E “... Assim caminha a humanidade / Com passos de formiga / E sem vontade...”, como diz Lulu Santos.
P. S (2).: As letras das músicas podem ser encontradas no sítio oficial da banda clicando AQUI e AQUI.
P. S (3).: "500 ANOS DE FALCATRUAS" - artigo de José Arbex Jr. sobre a impunidade da corrupção no Brasil pode ser lido clicando AQUI.
Jair Feitosa